Naquela fria manhã, as covas do campo santo pareciam sorrir. Estavam todas abertas, famintas, como se o chão tivesse aprendido a engolir tragédias com apetite de costume. Os quatro agentes do presídio perpétuo estavam lá, a postos. Imóveis e impassíveis, só observando em expectativa o desfecho do féretro. Para eles, era só mais um dia de trabalho. Ávidos por mais gorjetas. Além disso, corpos inertes, em silêncios sepulcrais. A caravana de ataúdes vinha vagarosamente, como se o tempo também tivesse entrado em luto. Não sou bom de matemática, mas contei trezentos esquifes. Todos iguais, sem nome, sem flor, em desbotada madeira crua. Era o sepultamento de um condomínio, literalmente. Esse cortejo fúnebre atravessava a cidade levando o peso do fracasso coletivo. Antes disso, aquele lugar transmitia orgulho aos proprietários. Ruas limpas, blocos organizados, um parquinho pintado com as cores da esperança. Morar ali era estar a um passo acima do caos urbano. Mas por dentro, o concreto se desfazia como confiança em político velho. Canos estourados, paredes infiltradas, promessas adiadas. O síndico sorria, dizia que tudo estava "no planejamento", com voz e ajuda de PowerPoint e alma enganosa de planilha. Um mestre das palavras, daqueles que fazem até rachadura parecer charme, povoando as mentes de condôminos em verdades inexistentes, como se sempre fosse mais fácil ouvir palavras bonitas do que encarar mofo no teto. Até que veio a noite do dilúvio. Choveu como se o céu quisesse lavar a alma da cidade à força. O sistema de drenagem, aquele "garantido" com tanta certeza, colapsou na primeira hora. A água subiu. Os gritos também. E, quando as luzes se apagaram, cada morador percebeu que não tinha saída. Nem pelas escadas, sequer pelas promessas. O síndico, dizem, ficou trancado no escritório. Morreu assistindo tudo pelas câmeras de segurança. Até nisso, foi irônico: faleceu olhando para o desespero que ajudou a construir. No dia seguinte, não sobraram vozes, só caixões. E, no último deles, o seu corpo, anônimo, foi enterrado com a mesma madeira crua com que enterrou a confiança de todos. Mas, como toda crônica triste precisa terminar com algum sinal de recomeço, deixo aqui o detalhe que pode mudar a história: o despertador tocou, eu acordei molhado de suor e espantado. Não havia lama nos corredores, nem caixões na portaria. Apenas o eco de um pesadelo com crianças em alvoroço nos arredores dos prédios e as mesmices, de sempre.