sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

A última travessia.

Hoje inerte vejo pessoas na vertical, próximas a mim chorando: familiares, amigos, todavia com certa alegria, as carpideiras em cantos melancólicos alternando em louvores esplendorosos. Mosquitos de flores entram e saem das minhas gélidas narinas. Eu sem poder reclamar com gotas saindo das vistas descongelando o corpo que estava na geladeira. Somadas a esses prantos entrou impetuosa toda de negro a minha eterna companheira. Ela se aproximou sem pressa, como quem já conhece cada passo até a mim. Tocou levemente minha fronte e, embora o mundo dissesse que eu estava morto, senti o frio de sua mão, profundo e absoluto, mas paradoxalmente acolhedor. Ao seu toque, os sons do velório pareceram distantes, dissolvendo-se em um murmúrio indistinguível. As vozes, os soluços, os cantos, tudo se tornou tênue, como uma lembrança antiga prestes a desaparecer. Apenas ela permanecia nítida diante de mim, firme, silenciosa, inabalável. Chegou a hora! Sussurrou, mas não com a voz que se ouve com os ouvidos. Era uma vibração que atravessava aquilo que restava de mim, sem exigir resposta. Vi meu corpo ali, imóvel, e pela primeira vez compreendi a estranha paz daquele instante. Não era uma partida abrupta, e sim o desfecho exato de um caminho que sempre esteve marcado. A dor dos meus deixou de ser peso, porque percebi que logo também se tornaria memória e reminiscência é o que a vida usa para continuar mesmo quando desistimos de respirar. Ela estendeu a mão. Não para me arrancar, mas para me guiar. E eu, enfim leve, aceitei. Enquanto atravessávamos a fronteira que separa o silêncio do desconhecido, ouvi, como último eco da existência, uma voz querida dizendo meu nome. Finalmente, chegou a hora fatal. Senti o ranger dos parafusos na tampa, mas mantive os olhos fechados de pavor. Em seguida o sacolejar de mãos na madeira que rangiam lá fora. A eternidade, afinal, exige coragem. E na escuridão do cubículo às coroas eram minhas únicas companheiras, mas elas como eu, acabarão mortas. Essa é a verdade da vida. Nascemos com a certeza que  morreremos algum dia. Portanto, a morte é inexorável, assim como o tempo. Lá onde estou não existe contratempos.

 


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