sábado, 31 de maio de 2025

O síndico e o dilúvio.

Naquela fria manhã, as covas do campo santo pareciam sorrir. Estavam todas abertas, famintas, como se o chão tivesse aprendido a engolir tragédias com apetite de costume. Os quatro agentes do presídio perpétuo estavam lá, a postos. Imóveis e impassíveis, só observando em expectativa o desfecho do féretro. Para eles, era só mais um dia de trabalho. Ávidos por mais gorjetas. Além disso, corpos inertes, em silêncios sepulcrais. A caravana de ataúdes vinha vagarosamente, como se o tempo também tivesse entrado em luto. Não sou bom de matemática, mas contei trezentos esquifes. Todos iguais, sem nome, sem flor, em desbotada madeira crua. Era o sepultamento de um condomínio, literalmente. Esse cortejo fúnebre atravessava a cidade levando o peso do fracasso coletivo. Antes disso, aquele lugar transmitia orgulho aos proprietários. Ruas limpas, blocos organizados, um parquinho pintado com as cores da esperança. Morar ali era estar a um passo acima do caos urbano. Mas por dentro, o concreto se desfazia como confiança em político velho. Canos estourados, paredes infiltradas, promessas adiadas. O síndico sorria, dizia que tudo estava "no planejamento", com voz e ajuda de PowerPoint e alma enganosa de planilha. Um mestre das palavras, daqueles que fazem até rachadura parecer charme, povoando as mentes de condôminos em verdades inexistentes, como se sempre fosse mais fácil ouvir palavras bonitas do que encarar mofo no teto. Até que veio a noite do dilúvio. Choveu como se o céu quisesse lavar a alma da cidade à força. O sistema de drenagem, aquele "garantido" com tanta certeza, colapsou na primeira hora. A água subiu. Os gritos também. E, quando as luzes se apagaram, cada morador percebeu que não tinha saída. Nem pelas escadas, sequer pelas promessas. O síndico, dizem, ficou trancado no escritório. Morreu assistindo tudo pelas câmeras de segurança. Até nisso, foi irônico: faleceu olhando para o desespero que ajudou a construir. No dia seguinte, não sobraram vozes, só caixões. E, no último deles, o seu corpo, anônimo, foi enterrado com a mesma madeira crua com que enterrou a confiança de todos. Mas, como toda crônica triste precisa terminar com algum sinal de recomeço, deixo aqui o detalhe que pode mudar a história: o despertador tocou, eu acordei molhado de suor e espantado. Não havia lama nos corredores, nem caixões na portaria. Apenas o eco de um pesadelo com crianças em alvoroço nos arredores dos prédios e as mesmices, de sempre.

 

sexta-feira, 30 de maio de 2025

As pesadas escolhas.

No instante em que escolhemos.
Tudo parece leve, fugaz.
Um gesto simples, um passo breve.
Sem pensar no que vem atrás.

Palavras ditas sem medida.
Silêncios guardados demais.
Desvios tomados na vida.
Que não voltam nunca mais.

Cada ato é uma semente.
Lançada ao solo do tempo.
Cresce calada, paciente.
Até se tornar momento.

E quando floresce, enfim, o fruto.
Nem sempre é doce o sabor.
Descobrimos, num minuto.
O real do que causou.

Ah, se soubéssemos antes.
O peso de decidir.
Mas só aprendemos adiante.
Quando é tarde para fugir.

Por isso, pense, respire, espere.
Antes de qualquer direção.
Escolhas moldam o destino.
E pesam no coração.

 


quinta-feira, 29 de maio de 2025

O hiato entre a volta e a saida

Na espessura do tempo, tua alma se perde. Entre o que é voltar e o que é partir. A volta, com seus braços de ferro e medo, é como um eco que não se apaga, mas persiste. O que é o retorno senão uma prisão disfarçada? O passo dado de volta é uma reverência à dor, onde a saudade se veste de prisão e ilusão. E o ontem se estende como um véu opressor. Há uma saída, mas ela é apenas uma linha tênue, bordada de incerteza, tingida de coragem. Teu olhar, contudo, se perde na paisagem do passado, onde a segurança do familiar te arrasta sem palavras. Mas, mulher, tu és feita de horizontes distantes. E o peso da volta é leve ao toque de tua vontade. No fio da decisão a luz se entreabre tímida. E a saída, ainda que incerta, é um sopro que liberta. Não temas o não retorno, pois teu ser é um ato de fé, onde cada escolha é um refúgio e um voo. A volta pode ser uma sombra, mas tu és sol e todo sol, por mais escondido, sempre se ergue.


quarta-feira, 28 de maio de 2025

A força do talento.

Cada ser humano tem diversificados talentos em sua vida. Uns se destacam com palavras, outros com números, alguns por empatia, outros por criatividade ou com a habilidade de fazer o que poucos conseguem. O ouvir, cuidar, organizar, inspirar, entre outros, faz parte desse contexto. É justamente essa diversidade de talentos que torna a nossa vida tão rica e cheia de possibilidades. Você não precisa ser bom em tudo. Precisa apenas reconhecer aquilo que lhe faz especial. Todos nós temos algo valioso a oferecer. Às vezes, o talento se revela cedo. Outras vezes, ele aparece aos poucos, com o tempo, com as vivências, com os desafios que se encontram sem que percebamos dessa competência e habilidades. A jornada de descoberta é parte da beleza de viver. O mais importante é entender que os nossos talentos não precisam ser iguais aos dos outros para terem valor, que se equivalem, penso eu. O mundo precisa de pessoas diferentes, com forças diferentes, trabalhando juntas. É nessa mistura de dons e compreensões de perspectivas que surgem as grandes ideias, os projetos transformadores e as conexões verdadeiras. Não subestime o seu potencial. Acredite no que você tem de único. Às vezes, aquilo que parece pequeno aos seus olhos pode ser exatamente o que o mundo precisa. Honre e sempre acredite nos seus talentos, cultive-os, compartilhe-os e nunca se esqueça de que o que nos torna diferentes também nos fortalece. A multiplicidade de vocações é um presente da vida. Valorize o que é seu. Engrandeça o que é do outro, para que todos em coesão construam um mundo mais criativo, mais justo e mais humano, de todos os esforços dispendidos.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

O pouco da minha riqueza, é maior que o mundo.

Aprendi com o tempo e o silêncio. Que há grandeza em viver com pouco, não por falta, mas por escolha. Em tempo algum, por renúncia, mas por liberdade. O que preciso cabe no coração, e o que não cabe, eu aprendi a deixar. O supérfluo pesa, o essencial sustenta. E é no essencial que mora a paz. Não corro mais atrás do que brilha. Prefiro o que acalma. Não coleciono coisas. Coleciono instantes. Cada necessidade que deixo para trás me devolve um pedaço de mim. E nesse vazio fértil, descubro a plenitude. Quem precisa de pouco, já tem tudo. Minhas poucas necessidades são minhas verdadeiras riquezas. Conto a liberdade de não precisar demais, mas consigo viver em paz.

 

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Calúnia e desonra.

Há quem escolha ferir sem cortar. Há palavras que ferem como lâminas. Matar reputações com dizeres frios de mentiras. Não cortam a pele, mas rasgam o ser, entre a injúria e a difamação, onde habita o veneno sutil do desrespeito. A injúria é um ataque direto. Cilada vestida de verdade. É o dedo apontado, o grito no rosto. Acusação sem prova, veneno sem cura. É o insulto que chama nomes. Veem com olhos que julgam. Bocas que espalham venenos indecorosos e ouvidos que aceitam sem pensar. A difamação rouba o que é mais valioso: o nome, a confiança e o respeito, que tenta apagar a dignidade de uma pessoa de bem, com a força da raiva. Mas a verdade é paciente. Ela espera firme, entre os escombros. Porque a honra não se apaga fácil, e a justiça, embora tardia, vem com a força de quem não esquece. Portanto, o tempo sempre será a voz da razão, mesmo que seres humanos, se é que podem ser tratados assim, com mentes inescrupulosas, dissertem suas retidões de caráter. Essas pessoas são dotadas de irracionalidades.

O tempo em nossas vidas.

O tempo, silencioso e imparcial, caminha ao nosso lado desde o primeiro sopro de vida. Não faz alarde, não se apressa, mas nunca para. Com ele, vem à experiência, a sabedoria, a compreensão do mundo e, pouco a pouco, o desgaste do corpo que o abriga. Cada linha no rosto é uma história. Cada dor nas articulações é um capítulo vivido. A mente se torna mais lúcida, mais ponderada, enquanto o corpo, outrora ágil, passa a obedecer com mais lentidão. É como se a ocasião, ao nos ensinar a ver a vida com mais clareza, exigisse algo em troca: a juventude, a força, a ilusão da eternidade. Talvez seja esse o equilíbrio, e só podemos entender a vida quando já não temos tanto dela pela frente. A sapiência do tempo não é cruel por maldade, mas por necessidade. Ele não destrói por prazer, mas molda, transforma, prepara. Ele ensina-nos que tudo é impermanente, inclusive nós mesmos. E ainda assim, é nesse contraste entre a sabedoria crescente e a fragilidade do corpo que reside a beleza da existência. Porque saber que somos finitos dá sentido ao agora. E, no fim, é a alma que carrega os vestígios das rugas não como cicatrizes, mas como medalhas de quem viveu mesmo que intensamente.


terça-feira, 6 de maio de 2025

Carta ao amor

Hoje pensei no número dois. Tão simples, tão discreto, mas com um poder que poucos percebem. Ele é o único número par que é também primo, uma raridade, uma exceção. Assim como o que sentimos: algo que foge às regras, que desafia o esperado. Dois. Como nós. Duas almas, dois corpos, dois mundos que se encontraram sem manual, sem previsão. O dois simboliza união. Representa o encontro, não para se perder, mas para caminhar lado a lado. Dois olhares que se buscam. Duas mãos que se tocam. Dois corações que, em sintonia, aprendem a bater num só compasso. Ser par e ainda assim ser primo é como amar: É ser parte de algo maior e, ao mesmo tempo, manter a própria essência. É estar junto, sem se anular. É dividir a vida, sem perder o que se é. É encontrar no outro o complemento que o mundo inteiro não soube dar. O dois, nos ensina que o amor verdadeiro não é comum. É raro. É especial. É escolha. E nós adoramos ler e interpretar esta carta, praticamente, todos os dias de nossas vidas, sem divisões e apreensões, em indissolúvel união.

 

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Eu adormeci com a saudade.

Na minha cama fria, os pensamentos são quentes. Chegam antes dos sonhos, se espremem entre o cansaço e o molhado travesseiro, que sussurra seu nome no escuro. A noite inteira é um eco do que já foi. Cada suspiro meu, em vão, tenta alcançar o silêncio que você deixou. Como um grito contido, fecho os olhos, não por querer dormir, mas por não suportar mais acordar nesse vazio. Recrio seu rosto nos tetos, nas paredes, nas dobras do lençol. Você se faz presente em tudo o que me falta. A sua ausência, essa estranha companhia, tem cheiro de lembrança e gosto de tempo perdido. A madrugada é uma tela onde desenho memórias com os dedos da mente. Os seus olhos ainda sabem dos segredos e caminhos, até os meus, mesmo que apenas na ilusão das lembranças. Seu riso se esconde entre os ruídos do meu silêncio noturno. Tudo arde em mim, como se meu corpo sentisse o calor de você, que partiu. O tempo não cicatriza, ele apenas reorganiza a dor em novas formas, mais sutis ou mais densas. Ao amanhecer, mais uma ausência! A luz do sol ativa minhas conturbadas memórias de alguém que partiu sem dizer adeus.

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Quando se escuta a verdade, isso se transforma em um pesadelo.

A verdade é um assunto intrincado, e frequentemente a resposta das pessoas ao confrontá-la pode ser desconfortável ou até mesmo rejeitada. Em diversas circunstâncias, não é que as pessoas "não gostem" de escutá-la, mas que ela pode abordar temas sensíveis, questionando convicções, costumes ou até mesmo a identidade de quem a ouve. A veracidade frequentemente expõe algo que não queremos admitir. Pode ser um erro nosso, uma precisão desconfortável sobre uma relação ou uma circunstância desafiadora da vida. Este embate com algo que nos incomoda costuma provocar resistência. Quando o acontecimento impacta diretamente a nossa autoconfiança ou as nossas convicções mais íntimas, temos uma inclinação inata para negá-lo ou, pelo menos, questioná-lo. A aceitação total da realidade requer bravura, algo que nem sempre estamos prontos para encarar, especialmente quando ela contrapõe nossa perspectiva de mundo. Frequentemente, ouvir a verdade implica enfrentar consequências que podem ser dolorosas. Isso explica, em parte, porque alguns indivíduos optam por viver na ilusão ou negar o ocorrido: o receio de sofrer futuramente parece mais intenso do que enfrentar a realidade no momento. Em termos psicológicos, nosso cérebro está intrinsecamente programado para procurar conforto e proteção. Frequentemente, a sinceridade do termo nos incomoda, e temos a tendência de nos distanciarmos para preservar a estabilidade emocional. A verdade dói, mas é necessária na vida do ser humano.

quinta-feira, 1 de maio de 2025

O espelho das ilusões.

Às vezes, a vida nos oferece um espelho em que as imagens são mais sonhos do que realidades. Olhei para essa moldura por muito tempo, esperando que ela me revelasse uma versão perfeita. Com o passar dos dias, percebi que as figuras desse quadro refletiam apenas sombras do que eu queria acreditar, e não as de que realmente sou. Chega-se ao ponto em que preciso pela necessidade de fazer as pazes com a verdade: as ilusões não são amigas da liberdade. Elas nos aprisionam em expectativas que nunca se concretizam, em sonhos que nunca acordam. A amarga verdade é o único caminho que me permite observar essas delimitações. Por mais doloroso que seja, estou me despedindo dessas ilusões. Elas foram parte de mim, talvez até necessárias em certo momento da minha vida. A cada adeus, um espaço é aberto para um pouco mais de real, algo que não se dissolve ao primeiro vento da realidade. Um tanto mais verdadeiro e capaz de me guiar sem enganos. Ao me retirar dessas ilusões, descubro uma força que antes desconhecia, sem máscaras, sem disfarces e livre para seguir a minha trajetória. Até no amor, um delírio inimaginável de devaneios. Durante muito tempo, acreditei que o amor fosse uma espécie de conto de fadas, onde dois corações se encontravam e, ao bater juntos, tudo se resolvia. Eu imaginava que o amor fosse à resposta para todas as minhas dúvidas, a cura para todas as minhas inseguranças. A vida, com seus próprios ensinamentos, me fez entender que o amor é mais complexo do que a ilusão que eu alimentava à ideia de que ele sempre foi fácil, sem conflitos, sem momentos difíceis, na crença de que ele deve ser perfeito e imaculado, sem falhas ou desentendimentos. Creio que estou me acostumando com a expectativa de que o amor sempre será aquela sensação arrebatadora, que nunca se perde, que nunca se transforma.