domingo, 26 de outubro de 2025

O relógio que o tempo não consome.

Encontrei lá no fundo do roupeiro, perdido entre quinquilharias esquecidas, o meu antigo relógio analógico da marca Mido. Foi como reencontrar um velho amigo que o tempo afastou, mas nunca apagou da lembrança. O metal já sem o mesmo brilho, a pulseira ligeiramente marcada pelos anos que, no entanto, bastou tocá-lo para que algo dentro de mim voltasse a pulsar. Esse relógio sempre foi mais do que um simples medidor de horas. Era uma espécie de companheiro silencioso, testemunha dos meus dias, dos atrasos e das pressas que me acompanhavam. Havia nele uma mania ou talvez uma teimosia que eu mesmo inventei: todos os dias, quase por instinto, atrasava os ponteiros alguns minutos. Não sei se era medo de chegar cedo demais às coisas ou vontade de enganar o tempo. Talvez fosse só uma forma de dizer que ele não mandava em mim. Lembro-me bem da transição que os anos trouxeram. Na década de setenta, o Brasil começou a ser invadido pelos relógios digitais, símbolo de uma modernidade que se anunciava com números brilhantes e sons metálicos. As vitrines pareciam prometer um futuro mais preciso e mais veloz, e também mais eficiente. Aos poucos, o velho Mido foi sendo deixado de lado. Primeiramente passou a dormir na cabeceira da cama, depois a repousar em alguma gaveta. O mundo girava mais rápido, e eu, sem perceber, fui deixando que o tempo me ultrapassasse. Hoje, ao encontrá-lo, percebo que o relógio ainda carrega os segundos com a mesma dignidade de antes. Não importa se parou se já não funciona como antes. Ele continua sendo o símbolo de uma época em que o tempo parecia mais humano, mais elástico, mais nosso. Há uma ternura em seu silêncio, uma fidelidade que as máquinas modernas jamais conhecerão. E talvez por isso eu tenha feito um pedido: que, quando chegar minha hora, apesar de meu ceticismo, que coloquem o Mido junto a mim, dentro do esquife. Não por vaidade, nem por apego material, mas por reconhecimento. Porque ele foi, durante tantos anos, o companheiro que marcou meus dias, o cúmplice das minhas pequenas rebeldias contra o relógio da vida. Sei que o meu corpo, como tudo o que é vivo, será um dia devorado pela terra. Mas o meu relógio? Ah, esse jamais será “coMIDO”. Ele continuará de algum modo, resistindo. Porque há objetos que não morrem. Guardam em si a alma de quem os usou, o rastro das horas que viveram juntos. No fim, compreendo que o tempo não é inimigo, mas espelho. Ele apenas reflete o que fomos capazes de viver nem mais, nem menos. Os ponteiros do Mido talvez tenham parado, mas dentro de mim ainda giram, lembrando que cada segundo teve um propósito, cada atraso uma história, cada batida uma presença. E talvez seja isso a eternidade: não o tempo que continua, mas o instante que permanece em gravações de lembranças.

 

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