Encontrei lá no fundo do roupeiro, perdido entre quinquilharias
esquecidas, o meu antigo relógio analógico da marca Mido.
Foi como reencontrar um velho amigo que o tempo afastou, mas nunca apagou da
lembrança. O metal já sem o mesmo brilho, a pulseira ligeiramente marcada pelos
anos que, no entanto, bastou tocá-lo para que algo dentro de mim voltasse a
pulsar. Esse relógio sempre foi mais do que um simples medidor de horas. Era
uma espécie de companheiro silencioso, testemunha dos meus dias, dos atrasos e
das pressas que me acompanhavam. Havia nele uma mania ou talvez uma teimosia que
eu mesmo inventei: todos os dias, quase por instinto, atrasava os ponteiros
alguns minutos. Não sei se era medo de chegar cedo demais às coisas ou vontade
de enganar o tempo. Talvez fosse só uma forma de dizer que ele não mandava em
mim. Lembro-me bem da transição que os anos trouxeram. Na década de setenta, o
Brasil começou a ser invadido pelos relógios digitais, símbolo de uma
modernidade que se anunciava com números brilhantes e sons metálicos. As
vitrines pareciam prometer um futuro mais preciso e mais veloz, e também mais
eficiente. Aos poucos, o velho Mido
foi sendo deixado de lado. Primeiramente passou a dormir na cabeceira da cama,
depois a repousar em alguma gaveta. O mundo girava mais rápido, e eu, sem
perceber, fui deixando que o tempo me ultrapassasse. Hoje, ao encontrá-lo,
percebo que o relógio ainda carrega os segundos com a mesma dignidade de antes.
Não importa se parou se já não funciona como antes. Ele continua sendo o
símbolo de uma época em que o tempo parecia mais humano, mais elástico, mais
nosso. Há uma ternura em seu silêncio, uma fidelidade que as máquinas modernas
jamais conhecerão. E talvez por isso eu tenha feito um pedido: que, quando
chegar minha hora, apesar de meu ceticismo, que coloquem o Mido
junto a mim, dentro do esquife. Não por vaidade, nem por apego material, mas
por reconhecimento. Porque ele foi, durante tantos anos, o companheiro que
marcou meus dias, o cúmplice das minhas pequenas rebeldias contra o relógio da
vida. Sei que o meu corpo, como tudo o que é vivo, será um dia devorado pela
terra. Mas o meu relógio? Ah, esse jamais será “coMIDO”. Ele continuará de
algum modo, resistindo. Porque há objetos que não morrem. Guardam em si a alma
de quem os usou, o rastro das horas que viveram juntos. No fim, compreendo que
o tempo não é inimigo, mas espelho. Ele apenas reflete o que fomos capazes de
viver nem mais, nem menos. Os ponteiros do Mido
talvez tenham parado, mas dentro de mim ainda giram, lembrando que cada segundo
teve um propósito, cada atraso uma história, cada batida uma presença. E talvez
seja isso a eternidade: não o tempo que continua, mas o instante que permanece
em gravações de lembranças.